Nasce a evolução biológica
Por Salvador Nogueira
Mais
um dos mistérios que cercam a origem da vida parece ter sido decifrado por um
quarteto de cientistas na Alemanha. Eles basicamente descobriram como a
evolução pode ter recebido o pontapé inicial da natureza, sem nenhuma ajuda
externa.
Talvez
surpreenda, sobretudo para aqueles que se apegam a expressões
“curinga” como “complexidade
irredutível” para se esquivar do problema
científico do surgimento da vida, o fato de a solução encontrada pelos
pesquisadores — e testada em laboratório — ser de uma simplicidade franciscana.
Comece
com microporos numa pedra aquecida, imersa em água. Nada diferente do que
já se esperaria encontrar em rochas vulcânicas submersas nos oceanos da Terra,
quatro bilhões de anos atrás. O único fator importante é que exista um
gradiente de temperatura dentro do microporo — ou seja, que ele seja mais
quente numa ponta e mais frio noutra. Algo que já aconteceria mesmo,
naturalmente. Aí a “mágica” já está feita.
Os
microporos assumem praticamente a função de protocélulas, promovendo a
replicação de moléculas portadoras de informação genética, como RNA ou DNA. Com
um detalhe adicional: o sistema favorece a replicação de moléculas cada vez
mais longas, capazes de armazenar quantidade crescente de informações
genéticas. Isso resolve um dos principais dilemas apresentados pelos estudos
sobre a origem da vida: como isso pode ter acontecido se, ao serem deixadas ao
sabor do mar aberto, as moléculas de DNA e RNA nunca cresceriam para ter
sequências maiores, simplesmente porque é mais fácil replicar as moléculas
curtas do que as compridas? O resultado mais esperado disso seria uma
“seleção natural às avessas”, empurrando sempre na direção da redução da
complexidade. A vida nunca apareceria desse jeito. Eis o problema.
Contudo,
o esforço de Dieter Braun e seus colegas da Ludwig-Maximilians-Universität, em
Munique, vira esse jogo espetacularmente. Como? A descrição completa saiu em artigo publicado na semana passada na revista “Nature Chemistry”. O trabalho
mostra que o gradiente de temperatura, combinado a um processo chamado de
convecção laminar, promove a entrada e saída de material dos poros e também
encoraja o acúmulo e a multiplicação de DNA longo, desprezando as moléculas
mais curtas. “Moléculas de 75 nucleotídeos sobrevivem, enquanto moléculas com a
metade desse tamanho morrem, o que inverte o dilema da sobrevivência do mais
curto”, escrevem os autores do trabalho.
Um
sistema que empurra naturalmente as moléculas de DNA e RNA a ficarem maiores é
a rota certeira para o surgimento da vida como a conhecemos. Afinal,
quanto mais compridas as moléculas, mais sequências de letrinhas químicas (os
chamados nucleotídeos) cabem nelas. Em suma, cabe mais informação genética, com
preservação natural daquelas que, pelas mutações aleatórias que contêm, se
replicam com mais facilidade e eficiência. Imagine esse processo avançando por
muito, muito tempo, até que uma molécula tropece numa receita para produzir uma
camada protetora ao seu redor. No interior dessa cápsula, a molécula genética
complexa poderia finalmente deixar o microporo e ganhar o oceano, sem
correr o risco de ser literalmente “diluída”. O resto, como dizem por aí, é
história.
DESAFIOS PELA FRENTE
Por
que esse trabalho não está sendo celebrado como a solução definitiva da origem
da vida? Bem, porque ele de fato não é exatamente isso. Ele mostra o que pode
ter sido a origem dos processos evolutivos, ainda puramente químicos, que
antecederam as primeiras formas de vida. Mas faltam aí dois passos cruciais
iniciais que antecedem essa etapa. Como se produzem as primeiras moléculas
capazes de portar informação genética (RNA e DNA) e como elas primeiro
“aprendem” a promover sua própria replicação? (No experimento, a replicação é
promovida por uma proteína de origem biológica, que obviamente estava ausente na
origem da vida.)
Essas
são perguntas que ainda seguem sem solução. A síntese de RNA e DNA em um
ambiente úmido permanece como um desafio porque a criação da molécula exige
muitos passos químicos. Até aí, nada demais. O problema é que eles costumam ser
perturbados pela água antes que cheguem ao seu desejado desfecho. A água
desmancha os compostos antes que eles virem RNA ou DNA.
Alguns
pesquisadores buscam chegar lá trabalhando em ambientes
desérticos (talvez até em outros planetas). Outros procuram soluções ainda
oceânicas, mostrando que reações
hoje típicas de metabolismo biológico (que incluem as que são capazes de
sintetizar coisas como RNA ou DNA) poderiam ser impulsionadas a partir de
química mais simples. Se você seguir os links acima, verá que eles
estão bem perto, mas ainda não chegaram exatamente lá.
Uma
vez que se produzem as moléculas portadoras de informação, sobretudo no caso do
RNA, a auto-replicação já é um problema mais bem encaminhado. Sabemos que o RNA
é uma molécula versátil, que pode não só codificar informação como promover sua
própria cópia, sem a necessidade de proteínas adicionais. Ele seria o ponto de
partida para a evolução biológica, como a entendemos hoje.
No
frigir dos ovos, o que os resultados já sugerem é que as barreiras
remanescentes não são intransponíveis. Pouco a pouco, cada um dos passos
envolvidos na origem da vida é recriado em laboratório, conforme as técnicas e
a compreensão dos problemas evoluem. E tudo leva a crer que nenhuma condição
extraordinária foi necessária para a aparição de formas de vida. Muito pelo
contrário. O que os experimentos mostram é que tudo pode ter sido bem simples.
Uma pequena variação de temperatura, a presença de ferro diluído no oceano e outras
coisas assim, nada complicadas ou incomuns. O único requerimento realmente
crítico para cobrir todas as etapas do processo sem ajuda artificial é o tempo
— alguns milhões de anos, para ser preciso. Por isso não devemos esperar que os
pesquisadores consigam, num único experimento, partir de química simples e
terminar com um ser vivo. Mas eles já conseguem reencenar as diversas etapas
cruciais separadamente. Falta muito pouco para entendermos a coisa toda.
Estamos quase lá.
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